segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Entourage Effect: a comitiva de canabinóides

O poder medicinal da maconha não está em apenas um ou outro canabinóide, mas sim em uma ação conjunta entre todos os seus componentes. Compreender os efeitos da ação dos canabinóides é o principal caminho para desfrutar da versatilidade dessa planta, que vem se mostrando a melhor opção medicinal para inúmeros tratamentos.
Por muitos anos o delta-9-tetrahidrocanabinol, o famoso THC, foi o canabinóide mais popular e amplamente pesquisado pela ciência. Isso se deve ao fato de ser o mais abundante e principal responsável pelos efeitos psicoativos causados pela planta. Até pouco tempo atrás, quase não se falava sobre outros componentes da maconha.
No entanto, hoje em dia parece que o canabidiol (CBD) tem chamado muito mais atenção. O canabidiol é o segundo canabinóide mais abundante na planta da maconha e apesar de ter muitas propriedades medicinais, inclusive anticancerígenas, ele se destaca por não ser psicoativo. Na verdade ele também é responsável por balancear os efeitos psicoativos do THC. Devido à sua capacidade de fornecer alívio terapêutico para crianças e adultos que sofrem de distúrbios epilépticos, o CBD vem ganhando cada vez mais destaque no debate sobre a maconha medicinal. Isso acontece simultaneamente em vários países, inclusive no Brasil.
Por aqui, graças à nossa sociedade desinformada e conservadora, bastou alguns canais de comunicação abordarem o CBD como tratamento não psicoativo para a epilepsia, e logo o composto caiu nas graças de todos, até dos mais desconfiados sobre o tema. Isso porque a abordagem midiática do CBD foi feita de forma individualizada, preconceituosa e desinformada. A grande mídia busca segregar o CBD (em forma de óleo), na intenção de fazer as pessoas pensarem que o canabidiol é algo alheio à maconha, não psicoativo e moralmente permitido. A intenção é muito clara: separar o CBD da maconha e continuar a recriminar o THC, sem esclarecer sobre os outros canabinóides, para manter a proibição da maconha. Esta divisão entre psicoativo/imoral e não-psicoativo/permitido, colabora para a manutenção do preconceito contra o usuário recreativo, além de prejudicar milhares de pacientes que necessitam de outros canabinóides além do canabidiol.
E não é só aqui que acontece isso. Alguns estados americando querem aprovar “leis do CBD” para o uso medicinal do canabinóide como um composto isolado e isso é gravíssimo. Devemos questionar e combater esse tipo de política, afim de melhorar o debate e buscar alernativas mais compatíveis com a versatilidade da maconha.
Por conta dessa divisão inventada pela mídia, muitos leigos podem enxergar o CBD e o THC como competidores, mas não são. A realidade é que ambos os compostos, juntamente com dezenas de outros canabinóides, desempenham um papel importantíssimo na prestação dos benefícios terapêuticos associados ao tratamento com a planta. Os efeitos medicinais são muito melhores quando os canabinóides trabalham em conjunto. É exatamente esse trabalho em equipe, entre canabinóides e mais de 400 outros compostos adicionais (terpenos, flavonóides, etc), que dão versatilidade a maconha e a tornam a melhor opção de tratamento para uma grande variedade de doenças.
A maconha é composta por dezenas de canabinóides medicinais. Dar atenção para um deles e ignorar todos os outros é um completo desperdício e uma injustiça.
A maconha é composta por dezenas de canabinóides medicinais. Dar atenção para um deles e ignorar todos os outros é um completo desperdício e uma injustiça.
Quanto mais canabinóides melhor
Um pessoa bem informada sobre maconha provavelmente estará familiarizada com os mais famosos canabinóides que compõe a planta, conhecidos como os Seis Grandes Canabinóides: THC, CBD, CBG, CBN, CBC, e THCV. Cada planta de maconha contém estes e muitos outros compostos em diferentes porcentagens, como parte do perfil químico total da planta. Uma planta com maior porcentagem de CBD, por exemplo, terá mais efeitos corporais, enquanto que uma planta com um nível de THC mais elevado, terá maior efeito psicoativo. A maconha é uma planta fantástica para a medicina, não só no sentido curativo, mas pela variedade de aplicações possíveis devido à essa grande diversidade de canabinóides.
Graças à décadas de cultivo e aperfeiçoamento de técnicas, hoje é possível manipular genéticas de maconha a fim de desenvolver uma planta com maior ou menor quantidade de determinado canabinóide. Por conta dessas técnicas de cultivo, hoje existem linhagens de maconha com mais CBD do que THC, na proporção de até 4:1. Mas isso não significa que essas plantas deixam de ser maconha só porque tem menos THC, nem os extratos derivados dessas plantas.
É o caso do Óleo de Maconha (Hemp Oil /RSO) de CBD, que está sendo apresentado ao público como medicamento feito unicamente de canabidiol, tornando-o moralmente aceito. Mas isso não condiz com a realidade. Sempre que falarmos sobre um extrato de maconha, o mais correto seria dizer que ele é rico em determinado canabinóide, jamais dizer que ele é feito - porque, afinal de contas, ele é feito de maconha. Portanto, não significa que extratos de CBD contenham somente CBD e estejam livres de THC, ou qualquer outro canabinóide. Este é um grande equivoco cometido por muitos leigos no assunto, quando não conhecem muito bem o processo de produção do óleo. O óleo é feito diretamente da planta, e pode ser feito a partir de qualquer genética de maconha, sendo assim, ele continuará contendo todos os outros componentes, porém em níveis diferentes. A única forma de se produzir um medicamento feito exclusivamente de algum canabinóide, é de forma sintética (como no caso do Marinol).
Além de canabinóides, a composição química da maconha contém outros compostos como os terpenoides, aminoácidos, proteínas, açúcares, enzimas, ácidos gordos, esteres e flavonoides, apenas citando alguns. Naturalmente, você consome todos esses compostos quando utiliza a maconha, seja com finalidades recreativas ou medicinais – inclusive, essa é a forma mais adequada de consumir a maconha medicinal. Vale lembrar que a maioria dos canabinóides apresentam propriedades medicinais e podem beneficiar a saúde em algum sentido. Ou seja, para um tratamento adequado, o médico precisa ter pleno conhecimento sobre genéticas de maconha e aconselhar a melhor genética para cada paciente. Alguns podem precisar de um óleo rico em THC, outros uma tintura rica em CBD, e quem deve fazer a distinção e escolha da genética é o profissional de saúde.
A questão é, como todos esses compostos funcionam em conjunto para proporcionar alívio terapêutico? A resposta pode ser encontrada em um conceito chamado de Entourage Effect, ou Efeito Comitiva.
Neste vídeo é possível entender melhor sobre os efeitos dos varios canabinóides encontrados na maconha:



Entourage Effect
Descrito pela primeira vez em 1998 pelos cientistas israelenses Raphael Mechoulam e Shimon Ben-Shabat, a ideia básica do Entourage Effect (ou Efeito Comitiva ao pé da letra), é que os canabinóides dentro da maconha funcionam em sinergia, trabalhando em conjunto e afetam o corpo através de um mecanismo semelhante ao dos próprios endocanabinóide do sistema corporal. Esta teoria serve como base para uma ideia bastante recriminada dentro da comunidade farmacologia: a ideia de que em alguns casos os extratos de maconha (óleos, tinturas e inclusive as próprias flores secas) contendo todos os agentes terapêuticos funcionam melhor que a administração de canabinóides individuais e isolados.
A teoria do efeito entrega foi aperfeiçoada há pouco tempo por Wagner e Ulrich-Merzenich, de maneira que eles definem os quatro mecanismos básicos pelos quais o extrato completo da planta contribui para o tratamento medicinal:
  • Capacidade de afetar múltiplos alvos dentro do corpo;
  • Capacidade de melhorar a absorção de ingredientes ativos;
  • Capacidade de superar mecanismos de defesa bacterianas;
  • Capacidade de minimizar os efeitos colaterais adversos.
Assista à este vídeo onde o Dr. Sanjay Gupta explica sobre o funcionamento dos canabinoides no nosso corpo e aborda também o Efeito Comitiva:


Múltiplos alvos
Muitos estudos têm demonstrado a eficácia da maconha como um agente terapêutico para espasmos musculares associados a esclerose múltipla. Um estudo realizado pelo Dr. Wilkinson e colegas, determinaram que os extratos da planta inteira foram mais eficazes do que o componente THC isolado.
Os pesquisadores compararam 1mg de THC contra 5mg/kg de extrato de maconha com a quantidade equivalente de THC, e descobriram que o extrato da planta  produziu um efeito antiespasmódico muito maior que o composto isolado. Os investigadores atribuíram este resultado a presença de canabidiol (CBD) no extrato de maconha, o que ajuda a facilitar a atividade do sistema endocanabinóide do corpo.
Melhor absorção
O Efeito Comitiva também trabalha para melhorar a absorção dos extratos de maconha. Os canabinóides são compostos quimicamente polares, ou seja, de difícil absorção pelo corpo na forma isolada.
A absorção de produtos tópicos fornece um exemplo deste problema. A pele é composta por duas camadas, o que faz com que seja difícil a passagem de moléculas muito polares, tais como a água e canabinóides. Com o auxílio de terpenoides, como cariofileno, a absorção de canabinóides pode ser aumentada e os benefícios terapêuticos alcançados mais facilmente.
Superando os mecanismos de defesa bacterianas
O Efeito Comitiva encontrado nos extratos de maconha, é eficaz no tratamento de várias infecções bacterianas. Existem uma série de estudos que mostram as propriedades antibacterianas dos canabinóides. No entanto, em alguns casos as bactérias desenvolvem mecanismos de defesa ao longo do tempo para combater os efeitos dos antibióticos, tornando-as resistentes às terapias anteriormente eficazes.
Sendo assim, os extratos da maconha são altamente benéficos, pois também possuem componentes não-canabinóides que têm propriedades antibacterianas. Estas moléculas atacam as bactérias através de maneiras diferentes dos canabinóides. Atacando em várias frentes, o desenvolvimento de resistência bacteriana se torna limitada.
Combatendo possíveis efeitos colaterais adversos
Por fim, o Efeito Comitiva permite que certos canabinóides modulem os efeitos colaterais negativos de outros canabinóides. O exemplo mais cabal disso é a capacidade do CBD de modular os efeitos psicoativos do THC.
Muitos já ouviram falar sobre o aumento da ansiedade e paranoia por vezes associada ao consumo da maconha. Entretanto, uma pesquisa mostrou que graças ao Efeito Comitiva, o CBD pode ser eficaz em minimizar a ansiedade associada ao THC, diminuindo sentimentos de paranoia nos raros casos relatados por usuários.
Como você pode ver, o THC, CBD e os outros canabinóides não precisam competir uns com os outros, muito pelo contrário, eles não só podem, como devem trabalhar em conjunto, afim de proporcionar a cura e/ou alívio terapêutico para uma ampla variedade de condições.

Vivemos um momento favorável ao CBD e apesar de termos consciência que já é um grande passo, temos que ficar atentos ao discurso que está sendo adotado pela mídia de massa (adotado inclusive por muitos pais e pacientes que precisam do canabidiol), onde destacam apenas o composto CBD como agente tratador de doenças, desassociando ele da planta da maconha e negligenciando os benefícios medicinais de todas as outras dezenas de canabinóides – como se somente o uso do CBD fosse medicinal e merecesse respeito, enquanto o uso de outros canabinóides – tão ou mais importantes, dependendo do caso – é considerado desnecessário. Isso também compromete a saúde de milhares de outros pacientes que se beneficiam dos efeitos de outros canabinóides, como o próprio THC que é o indicado em casos de TDAH, depressão, ansiedade, esclerose múltipla, entre outras.
Os casos do uso de CBD que ganharam destaque na mídia são todos relacionados à epilepsia, e existe uma infinidade de casos na internet de diversas outras doenças, tratadas com a maconha completa, inclusive casos de cura de câncer. O direito à maconha medicinal, seja na forma de óleo, tintura, pomada, extrato de CBD, de THC ou oqualquer seja, é uma questão de respeito e dignidade. A luta é pela planta, não por um composto.
Além disso há uma questão não abordada pela mídia, porém não menos importante e que vale a pena destacar: ninguém deveria precisar pedir permissão para importar nenhum tipo de extrato de maconha, pois deveríamos cultivar a maconha aqui mesmo. O interesse da grande indústria em manter a planta proibida é muito grande, e quanto mais distante eles conseguirem nos manter longe dela, mais poderão lucrar. Monopolizar o cultivo e produção de medicamentos é sem dúvida um dos objetivos das grandes farmácias, como a Bayer e seu braço GW Pharma. Sociedade e legisladores precisam entender que a melhor alternativa para produção de maconha medicinal é plantar aqui, em solo brasileiro, e não ter que importar. A parcela de pacientes que podem pagar U$ 500 (fora impostos) na importação do óleo, é mínima, apenas quem tem muito dinheiro para manter um tratamento assim. O óleo de maconha deveria ser distribuído gratuitamente pelo SUS e regulamentado para a produção caseira ou por cooperativas, e o que não falta são pessoas já dispostas a começar trabalhar com isso aqui no Brasil.
O cultivo caseiro é pilar central na questão da maconha medicinal.
O cultivo caseiro é pilar central na questão da maconha medicinal.
O primeiro passo já foi dado e é importante sim, mas a forma como esta sendo conduzido fará toda a diferença. A sociedade precisa compreender que não é possível isolar um canabinóide a não ser pela produção sintética, nenhum óleo no mundo é composto apenas por um único canabinóide. Não existe esse papo de “óleo de CBD”, é óleo de maconha! Ou se quiserem, óleo de maconha rico em CBD. Nesse sentido, o mais importante é o conhecimento das genéticas adequadas e o desenvolvimento de tratamentos com base nessas genéticas específicas.
Uma coisa é certa: comer frutas reais, legumes e outros vegetais, proporciona uma nutrição muito mais saudável e eficaz do que tomar pílulas de vitaminas isoladas. A ciência vem mostrando que com a maconha pode funcionar da mesma forma, a comitiva de canabinóides valem muito mais do que um único composto isolado. Que venha o óleo, que venham as cooperativas e cultivo caseiro… que venha a cura pela maconha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário